Você sabia que ambientes aquáticos contaminados com resíduos de antibióticos podem contribuir para o aumento da resistência bacteriana e causar efeitos nocivos em peixes?

Lucicleide Ângelo Silvaa. Tarcio Teodoro Bragab,c, Keite Nogueirab,d, Helena Cristina Silva deAssisa,e

aPrograma de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, 81531-980, Brasil
bDepartamento de Patologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, 81531-980, Brasil
cPrograma de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia, Instituto Carlos Chagas, Fiocruz-Paraná, Curitiba, Paraná, 81310-020, Brasil
dLaboratório de Bacteriologia, Complexo Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, 80.062-240, Brasil.
eDepartamento de Farmacologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, 81531-980, Brasil

A resistência de microrganismos a fármacos representa uma ameaça crescente à saúde pública mundial e foi eleita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das dez maiores ameaças à saúde pública global.

Os produtos farmacêuticos, entre eles os antibióticos, são essenciais para a medicina humana, indústrias, pecuária, agricultura e manutenção da saúde pública. Desta forma, os antibióticos são inseridos no ambiente através do nosso esgoto, do escoamento agrícola e da pecuária, de efluentes industriais ou até mesmo por meio do descarte inadequado de fármacos não utilizados. Além disso, os processos de tratamento de esgoto e de água não são eficientes na remoção destes tipos de contaminantes.

Na Figura 1 mostramos as possíveis rotas de entrada de antibióticos em ambientes aquáticos, bem como sua passagem pelas estações de tratamento de esgoto e de água (que não conseguem removê-los totalmente).

Figura 1. Rotas de entrada de antibióticos em ambientes aquáticos e  sua passagem pelas estações de tratamento de esgoto, efluentes industriais e de água potável.
 

Assim, os antibióticos estão sendo encontrados em baixas concentrações em rios, águas subterrâneas e até mesmo em água potável. Além disso, estudos também têm mostrado a presença de antibióticos em organismos aquáticos, como peixes, e em produtos que utilizamos para nossa alimentação, como carnes e leite.

Entre estes antibióticos, podemos citar como exemplo a ciprofloxacina que age inibindo enzimas que promovem a multiplicação das bactérias. A ciprofloxacina é um dos antibióticos mais amplamente utilizados no mundo. Tem como alvo bactérias importantes na medicina humana e veterinária. É indicada para o tratamento de vários tipos de infecções, podendo ser usada como medicamento de último recurso para infecções bacterianas graves e, portanto, é um dos antibióticos mais importantes. Por causa disso, o seu uso na medicina veterinária não é mais permitido em alguns países, a exemplo do Brasil. No entanto, a ciprofloxacina pode ser originada a partir da utilização de outro antibiótico de uso veterinário chamado enrofloxacina.

Já se sabe que a presença de antibióticos em ambientes aquáticos pode influenciar negativamente no fenômeno de Resistência Antimicrobiana (RAM). Quando esses microrganismos ficam expostos a antibióticos, eles podem sofrer alterações que os tornam mais resistentes aos fármacos. É como se as bactérias se acostumassem ao antibiótico, e assim, fosse necessária uma dose cada vez maior para seja eficiente no controle da infecção. A RAM põe em risco a eficácia da prevenção e do tratamento de um número cada vez maior de infecções por vírus, bactérias, fungos e parasitas. Em nosso trabalho, verificamos que as concentrações de ciprofloxacina presente em rios e águas residuais é capaz de causar resistência em bactérias já a partir de dez dias de exposição ao fármaco (dados não publicados).Mas, os problemas de antibióticos presentes no ambiente não se limitam somente as questões de resistência. Além disso, é importante pensar na saúde dos animais que vivem nestes ambientes aquáticos, como por exemplo os peixes, para os quais pouco se sabe sobre o efeito da exposição a resíduos de ciprofloxacina presentes no ambiente.

Para investigar sobre os possíveis efeitos da exposição de peixes a baixas concentrações de ciprofloxacina realizamos uma pesquisa em laboratório. Desta forma, em um ambiente controlado, os peixes foram expostos a diferentes concentrações de ciprofloxacina por 28 dias. Em seguida, avaliamos diferentes biomarcadores em diferentes tecidos. Lembra quando você vai ao médico e pede para fazer um check-up e o médico prescreve vários exames para você fazer? É assim que funciona neste tipo de pesquisa. Biomarcadores são respostas biológicas que podem ser medidas e usadas como indicadores da condição de saúde de um organismo. Como por exemplo, quando você faz um hemograma e avalia como estão suas hemácias, leucócitos e plaquetas, estes podem ser considerados como biomarcadores. Caso algum deles não esteja dentro da faixa de normalidade, isso é um indicativo de que algo pode estar errado e o médico solicita outros exames para avaliar outros biomarcadores e saber o que está acontecendo. Quanto mais biomarcadores você investiga mais informações você terá.

Então, nós avaliamos diferentes biomarcadores nos peixes expostos à ciprofloxacina e comparamos com os peixes que não foram expostos à ciprofloxacina (chamamos isso de grupo controle). Nesta pesquisa investigamos o efeito de três concentrações de ciprofloxacina: a) concentrações presentes em rios, b) concentrações presentes em esgotos domésticos e c) concentrações presentes em efluentes hospitalares ou em indústrias farmacêuticas.

Nosso modelo de estudo foi o jundiá (Rhamdia quelen), um peixe nativo de água doce, neotropical. O jundiá é muito encontrado na região Sul do Brasil. É utilizado em psiculturas e é fonte de alimentação em populações Ribeirinhas. Nós avaliamos biomarcadores nas brânquias, no sangue, no cérebro, no fígado, nas gônadas e no rim posterior.

Os resultados da pesquisa mostraram que todas as concentrações testadas causaram algum tipo de alterações nos biomarcadores avaliados. Mesmo a menor concentração de ciprofloxacina. Na Figura 2 é possível ver um resumo dos efeitos observados nos peixes após exposição à ciprofloxacina por 28 dias.

Figura 2. Resumo dos resultados obtidos no estudo dos efeitos da exposição de peixes e bactérias às concentrações de ciprofloxacina presente em rios, águas residuais e efluentes industriais.

As alterações observadas podem refletir no organismo, como acontece nos humanos, quando por exemplo estamos com os triglicerídeos altos, que se não tratados podem aumentar o risco de ter várias complicações sérias, como doenças cardíacas, infarto ou AVC. Na natureza, algumas destas alterações, como diminuição de células de defesa, neurotoxicidade e nefrotoxicidade, observadas neste estudo, podem comprometer o sistema de defesa do animal, deixando-o mais suscetível às infecções, bem como afetar a capacidade de locomoção, alimentação e reprodução, trazendo perturbações ecológicas que podem impactar negativamente os níveis hierárquicos maiores como as populações, por exemplo.

Por fim, nossos resultados podem ser utilizados para estudos de avaliação de risco constituindo-se como importante ferramenta para a vigilância ambiental em saúde. Além disso, considerando estes resultados do ponto de vista de Saúde Única (One-health), nova vertente que trata da integração entre saúde animal, ambiente, saúde humana e políticas públicas, nossos resultados servem de alerta para possíveis efeitos negativos da presença de resíduos de fármacos na água potável e nos alimentos que consumimos diariamente.

Referências

SILVA, LA. Efeitos hematológicos, bioquímicos, genotóxicos, histopatológicos e reprodutivos de concentrações ambientais de ciprofloxacina em peixe neotropical Rhamdia quelen. Doutorado (Doutorado em Ecologia e Conservação). Universidade Federal do Paraná, 2022.

KELLY, K.R., BROOKS, B.W. Global Aquatic Hazard Assessment of Ciprofloxacin: Exceedances of Antibiotic Resistance Development and Ecotoxicological Thresholds, in: Progress in Molecular Biology and Translational Science. Elsevier B.V., pp. 59–77, 2018.

Autora: Lucicleide Ângelo Silva

Eu sou Lucicleide, bióloga, mestre em Ciência e Tecnologia Ambiental pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)e agora doutora em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com experiência na área de Toxicologia Ambiental, Ecotoxicologia, Resistência Bacteriana, Tratamento e Potabilidade da Água.

E-mail de contato: lucicleidern@gmail.com

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Você sabia que ambientes aquáticos contaminados com resíduos de antibióticos podem contribuir para o aumento da resistência bacteriana e causar efeitos nocivos em peixes? © 2022 by Lucicleide Ângelo is licensed under CC BY-NC-ND 4.0 (Creative Commons — Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International )